quarta-feira, 15 de maio de 2019

A Faca que veio da Lâmina

Uma Faca de Dois Legumes

Tem aparecido pouca coisa por aqui sobre a vida sitiante, então para variar, vou contar como se livrar de um problema e cortar a desgraça reciclando uma lâmina de roçadeira.

Quem tem sítio ou gramado grande possivelmente tem uma roçadeira, esta é uma das ferramentas mais indispensáveis e vale a pena investir na melhor possível. A coisa é bruta aqui na Borrússia, então a minha é fortinha, uma 290 da Sthil, a qual recomendo efusivamente, pois é comparável ao Fusca em confiabilidade e durabilidade, só não em preço, mas fazer o que...

Bom, as roçadeiras podem trabalhar com fios ou lâminas para cortar a vegetação, se for fio, não há muito o que dizer, apenas que prefiro os de perfil quadrado, mais grossos, porque cortam por mais tempo antes de arrebentar e é um saco parar toda hora para rodar o carretel.
Já com as lâminas a coisa é bem mais complicada, pois há diversos tipos, mas os principais estão na foto ao lado. Além destes se pode encontrar lâminas circulares com s dentes imitando os elos de uma corrente de motosserra, lâminas com quatro pontas, ou um esquisito, de lata e com várias pontas, mas que serve apenas para gramados. Há modelos com partes móveis também, mas estes eu sinceramente desaconselho, mesmo sem nunca ter experimentado, porque me parece bem óbvio o risco ao operador e a quem e o que estiver perto.

O que é difícil é saber qual o melhor uso para cada uma destas lâminas e parece útil falar um pouco das mais comuns: as lâminas circulares trabalham por muito pouco tempo entre afiações, mas como são destinadas a cortar caules mais grossos em serviços florestais, desempenham bem este papel, inclusive com galhos baixos. A minha experiência diz que elas vão bem até diâmetros de 4 cm a 8 cm se não houver vegetação arbustiva densa junto, pois tendem a embuchar na proteção da lâmina (que pode ser retirada sem risco) e forçar muito o motor. É importante que se tome o maior cuidado com pedras porque além de estragar a lâmina facilmente elas tiram lascas com muita força. Depois há as lâminas do tipo faca com duas, três e até quatro pontas. As de três ou mais pontas são as melhores para o uso geral operando muito bem de capim a capoeira média, com pedras ou sem. Embucham menos, mantêm o fio por mais tempo e me parece ser as que menos forçam o motor e a transmissão, que fica dentro do joelho, na ponta de baixo, perto da lâmina.

A única desvantagem da lâmina de três pontas é que gasta meio rápido se há pedras e logo encurta, diminuindo o rendimento e talvez por isso tenham inventado a de duas pontas, na qual a superfície de corte é bem maior e roça mais área em menos tempo.

O motivo disso o Albert já explicou a tempos quando disse que a energia é igual a massa multiplicada pela velocidade (da luz) ao quadrado. Nesta lâmina comprida e pesada a massa da área de corte é maior do que todas as demais opções que conheço e a velocidade angular também é maior em qualquer rotação, pois é mais comprida que qualquer outra, além da afiação constante reduzir mais sua largura que o comprimento.

Se o uso for em capoeira média, onde os caules vão estar por volta dos 4 ou 5 cm, independente se for densa ou não, ela é a melhor opção, sem dúvida, porém não pode haver pedras de forma alguma. Não só porque a lâmina bate nelas com muita força e tira facilmente lascas voadoras na sua cara (use proteção sempre, afinal um capacete com viseira em tela de plástico não custa 150 reais e olhos não se encontra para vender), mas também porque a transmissão recebe um grande impacto e quebra facilmente.

Pode parecer enrolação de blogueiro, mas esta experiência compartilhada não achei em lugar nenhum e os fabricantes parecem fazer questão de não explicar, o resultado disto é que nos balcões da vida quase sempre desaconselham o uso da lâmina de duas pontas, quando é disparada a melhor solução para capoeira alta e densa, inclusive para campo sujo, desde que não haja pedras como disse antes.

Roçar o Prejuízo Desde a Raíz


Depois de rachar duas transmissões que custam perto de 300 reais, isso se não for com peças originais, eu desisti de usar a lâmina de duas pontas e com raiva já ia jogar fora essa maledeta, quando ao pegá-la na mão vi que seu aço era excepcional, tinha 3,5 mm de espessura e mesmo depois de dois anos de uso ainda restara muito de sua forma original.


Pensei que poderia dar uma boa faca e fui na internet procurar modelos. Achei muita coisa, os russo adoram e há coleções imensas de modelos em tamanho normal e prontos para imprimir. Até tentei isso, mas como o tamanho que eu tinha era restrito e a curvatura da lâmina grande se quisesse aproveitar quase tudo, terminei só usando a pesquisa como inspiração mesmo porque não havia nada que se ajustasse, especialmente para aproveitar o furo do eixo.

Como havia esta curva na lâmina resolvi adaptar o desenho da Kukri,  a temida faca dos temidos Gurkhas, que na vida real é quase um facão tático. Apenas tinha que fazer bem menor e estilizado como uma faca de caça para não precisar de muito acabamento e encarar sem medo os desafios do sítio, seja no mato, no galpão ou na churrasqueira.

Destemperados não devem fazer facas

Sem maiores pretensões, risquei o modelo direto na lâmina a mão livre mesmo, usando um lápis até achar um desenho bom, então reforcei ele com uma caneta hidrográfica, prendi no torno e baixei o cacete com a esmerilhadora usando a técnica clássica da escultura: cortar fora tudo que não parecesse com a faca.


Depois e cortar a forma básica, pensei que um cabo em madeira simples bastaria, já que era Fulltang, e bastariam dois furos para os rebites e mais um na ponta para o cordelete (a cordinha de enrolar no pulso que parece bobagem, mas pensar uma faca pesada caindo no seu pé ou voando da mão ao cortar um galho não são coisas auspiciosas).


O problema foi que eu não destemperei o aço, mas também não poderia porque ainda não fiz minha forja, e estas lâminas são temperadas em toda a superfície, não só no fio como fazem os cuteleiros ruins. Os bons sabem como dar dupla têmpera: uma mais macia no corpo para não quebrar o cabo facilmente e outra mais dura, só no fio, para que a faca corte mais depois de afiada, mas esta será outra estória, apenas fique esperto: uma faca artesanal por menos de 400 reais não tem como não ser algo para turista e se a bainha for rebuscada então fuja!

Até fazer os três furos arruinei umas cinco brocas e olha que tive que iniciar com furos pequenos e depois os alargar. Talvez tenha sido a parte mais idiota e difícil de todo o processo.

No Farquejo faça um Choil no Ricasso


No cabo não me estressei, tinha um pedaço de Angelim a mão, cortei no meio para fazer duas talas e como não tinha esses rebites legais de cutelaria, nem estava com saco de pedir e esperar os Correios, cortei um gancho de prender janela em duas partes e furei as talas conforme os furos do espigão para não dar erro, ai foi só passar Araldite em tudo e transpassar os pedaços de latão cortados do gancho. Uma noite no torno e pronto.





Abre parênteses.
Tenho um amigo com quase 80 anos que ainda ara com bois e têm uma destreza impressionante com o facão, ou terçado para os nortistas, ao qual se refere como sua caneta e bem que escreve mesmo com ele. Por homenagem a quem muito me ensinou, peguei emprestado dele este termo farquejo, pois nunca escutei outra pessoa o pronunciar. Ele tem dois significados, pode ser tomar um banho quando fica inadiável, ou fazer com que peças grosseiras de madeira se alinharem e encaixarem desbastando na espessura com o facão.
Fecha.


Para farquejar iniciei com um disco de desbaste na esmerilhadora e fui afinando a lâmina, esculpindo o falso fio e aumentando um pouco o semicírculo no Ricasso, onde o dedo indicador ficará alojado naquilo que se costuma chamar de Choil Sem Fio.

O Ricasso é a parte mais grossa e sem fio que fica no fim da lâmina, antes da guarda. Nele se pode fazer ou não o Choil, mas como o projeto era de uma faca para uso pesado sem guardas, para melhorar a empunhadura decidi pelo Choil que melhora muito a firmeza da empunhadura. Um Choil menor também poderia ser feito logo depois do fio para permitir que toda a lâmina fosse afiada, mas é muito mais estético que prático.

Alerta de Cultura Inútil!

Não se deve confundir o Choil e Cho, ou Kaura, das facas Kukri verdadeiras. Eles ficam no mesmo lugar, mas possuem utilidades bem diferentes: o Choil serve tanto para travar uma lâmina oposta e permitir quebra-la ou desviá-la, tal como há em algumas espadas, já o Cho é para fazer pingar o sangue que escorre pela lâmina, antes de chegar no cabo e melar tudo...

O acabamento mais fino foi realizado de forma econômica usando um disco Flap descartado como base para uma lixa redonda presa por cima na esmerilhadora, assim o que se faz com os 15 reais de um Flap, se consegue fazer com 3 ou 4 de uma lixa, com a vantagem haver bem mais opções de grão.

Deve dar arrepios nos cuteleiros ver o cabo lixado junto com a faca, tudo montado, mas fazendo isto não tive trabalho com os pinos do cabo nem para moldá-lo e, surpreendentemente, a cola suportou muito bem. Seria bom ter polido, mas não tinha nem massa, nem politriz; então ficou na lixa fina mesmo e o cabo foi apenas envernizado com o resto de um PU que eu tinha.




Algumas horas de pedra de amolar e ela ficou cortando muito bem. Dias depois, quando eu já a havia usado algumas vezes, assentado o fio melhor e feito pequenos ajustes na forma, pois ficara um pouco barriguda para cortar coisas pequenas estava pensando na sua bainha e no tento de couro para o pulso, quando aconteceu uma grata surpresa.

Um casal de amigos que não via a muito tempo e de quem gosto muito veio nos visitaram e lhes contando as peripécias do Pastor Alemão mostrei a faca, dai pronto! Foi contar a estória para trocá-la por 10 centavos, já uma faca eu não poderia dar de presente para uma amiga, porque cortaria a amizade, não é Mãe?


CORTE-SE   


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