sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Pegar no Bigolaro é Bom!


Eis uma estrovenga grande e grossa que extrapola muito os 16,5 cm, lustrosa e dura, causa um suador em quem usa, porque quanto mais apertada for, mais saborosa será a massa branca que expele!
Il Torchio Bigolaro.




Confesso que gosto um pouco mais que devia de coisas antigas, especialmente aquelas que se pode berber e ouvir, mas também de ferramentas, carros e panelas. Valorizo os aspectos culturais e históricos destas coisas e me preocupo quando elas sofrem adaptações e reinterpretações ruins nestes tempos pós-modernos e não raro se lhes roubam a essência.

Panelas velhas não fazem só comida boa, fazem comida de uma forma única, que nem sempre é insuperável, mas sempre é irreprodutível.  Invocar receitas tradicionais, mesmo quando se dispões de todos os ingredientes originais e autênticos e conhecendo os segredos das proporções e tempos, quase sempre requer mais algumas coisas que a tecnologia disponível nem sempre pode fornecer.

Estes detalhes são onde o diabo se esconde: como não cozinhar no fogo de lenha, ou usar uma frigideira de ferro com o “teflon” que o uso por cinquenta ou mais anos criou? No roll ainda cabe alguns utensílios específicos que fazem toda a diferença, como usar um Bigolaro ao invés de uma extrusora motorizada, então, quem nunca quis pegar num Bigolaro que atire o primeiro dislike!

As diferenças fazem toda a diferença, trato feito minha bruxa!


Sonho antigo! Eu queria um Bigolaro para chamar de meu, já bem antes de saber que se chamava assim, pois os tinha visto em coleções de artefatos coloniais e alguns museus e me apaixonei à primeira vista.

Queria tanto que até importei um similar da China, uma reinterpretação modernizada criticada cima, em aço inox e plástico, que usei muitas vezes e sempre com resultados incomparáveis a qualquer massa fresca que pudesse achar por ai - inclusive daquelas alegadas como “artesanais” feitas nas casas especializadas onde adicionam ouro em pó. Ocorre que eu ficava com uma sensação de incompletude, porque sabia que não era a mesma coisa, a começar pelo ritual – imagine uma missa em um podcast...

Continuei a procurar por muito tempo e dava por arquivado o desejo quando uma amiga, leitora deste blog bissexto, mandou a foto de um Bigolaro que achara nas em suas andanças pelo Planalto Riograndense e disse que se lembrara de mim. Essas bruxinhas não nos dão paz...

Consciente, ela não sabia que eu desejava tanto um treco destes, deve ter levado um susto quando supliquei que comprasse um igual e na hora se prontificou, mas ela estava de passagem comprada para voltar para sua casa, tinha passado algum tempo cuidando da mãe e voltava naqueles dias, assim eu teria que curtir uma angústia!

Foram meses, eis que de repente ela mandou uma mensagem "Tu ainda quer...", amigas são para estas coisas e mais alguns dias pude pegar no Bigolaro pela primeira vez, com a vantagem de que o frete virou uma dívida que só poderá ser paga com uma “bigolada” aqui em casa.

Pode parecer idiota, na verdade é idiota, mas eu queria tanto e nem o nome direito da coisa eu sabia! Paixão é assim, então tomei vergonha e postei uma foto perguntando se alguém sabia o nome, porque eu não tinha a menor ideia.

Quase instantâneo! Um casal de amigos - que amo e não vejo a versão real desde que voltaram do Nordeste - respondeu informando que se tratava “do infalível Bigolaro” e que na tradição familiar ele passava de geração para geração. Depois desta coloquei a minha ignorância de molho e fui estudar.

Na bandiera, na léngoa, na storia 


  • Antes, um aviso de utilidade pública: o Bigolaro em questão era feito na serra gaúcha, por uma empresa metalúrgica de Caxias do Sul chamada Lieme, que infelizmente fechou a alguns anos e como tentei, mas não consegui identificar nenhuma outra que ainda os fabrique, então se alguém souber onde ainda é produzida esta máquina, ou se onde pode ser obtida no Brasil, por favor, deixe a dica nos comentários, é importante!


Um pouco de história na frente dos bois.


O Bigolo ou Bigoli (se pronuncia “bigól”) veio antes do Bigolaro e seu nome possui muitas explicações, uma das mais aceitas o relaciona com "bigàt" palavra do dialeto Vêneto que significa lagarta, por sinal este dialeto é falado até hoje pelos imigrantes italianos do Rio Grande do Sul, em sua maioria originados nesta região.

Não confunda Beagle com Bigoli
A história desta massa remonta a meados do século doze, quando a cidade-estado de Veneza entrou em guerra com a Turquia, que lhe afundou os navios com o precioso trigo, exigindo o racionamento e misturas na farinha; foi assim que surgiu essa massa rústica e simples, com a forma de um macarrão grosso, feita apenas de trigo comum, água, sal. Ovos, naquela época, eram preciosos demais para serem usados na massa e só depois da segunda guerra mundial foram adicionados nas receitas, assim como algum percentual de farinha de grão duro, ou sêmola.

A consistência mais rígida do Bigoli e sua aspereza propiciam a ela absorver muito mais molho do que uma massa comum, talvez isso tenha ajudado ela a se tornar a preferência de toda a região norte da Itália onde várias festas populares lhe são dedicadas.

Existem incontáveis receitas e muitas variantes da pasta básica, aquelas que utilizam centeio, trigo sarraceno ou farinha integral são conhecidas como Bigoli Mori. Por esta massa ter a origem em uma época de muita restrição alimentar ela foi incorporada na cultura popular como o prato sdequado para as ceias nas datas de contrição do calendário cristão, especialmente a véspera de Natal, no início da Quaresma e na Semana Santa. Nestas ocasiões o Bigoli é servido em receitas simples, com poucos ingredientes e a preferência recai sobre o tradicional “Bigoli in salsa”, também conhecido como “Bigoli con le Sardelle” - Sardele é como costumam denominar a anchova salgada na região do Vêneto. Um prato saboroso feito apenas com massa, azeite, cebola e anchovas ou sardinhas secas. 

Por mais de duzentos anos os “Bigoli” foram feitos de forma manual e trabalhosa, até que em 1604 o Sr. Bartolomeu Veronese, um Genovês que produzia massas, inventou a "Torchio Bigolaro", uma prensa muito parecida com a atual, porém toda em madeira e assim a manufatura e o consumo desta massa se popularizaram por toda a região do Vêneto que escolheu o dia 26 de janeiro como o Dia do Bigoli.



O Infalível Bigolaro


Tradicionalmente o Bigolaro é preso na mesa de madeira que não fala na cozinha das famílias italianas, onde há um furo para ele, ou em uma banqueta na qual fica sentado seu operador, de forma que fique suficientemente alto do chão.

É uma máquina bem simples, basicamente um cilindro de bronze com aletas de ferro para ser fixado em uma superfície.  Dentro dele há um embolo movido por um fuso, o qual ao ser enroscado, empurra a massa contra uma trefila (molde de placa furada) para extrusá-la com alguma forma. Mudando-se a trefila, se muda o tipo da massa e as mais comuns além do Bigoli  são o Espaguete, o Talharim e o Macarrão, mas há trefilas especiais para fazer massas mais largas de “Capeletti” e “Lasagnha”, ou enroladas como “Casarecce” e “Fusilli”.
Para fazer o Bigoli se usa uma trefila com furos redondos similar à do Espaguete, porém maiores, com diâmetro entre 2,5 e 3 mm e a extrusão é feita até a massa atingir o comprimento de 30 a 40 cm.
Na medida em que a massa sai por baixo do Bigolaro ela deve ser enfarinhada e aparada em uma bacia ao ser cortada, em seguida é bom secá-la pendurando os fios em varas chamadas “perteghette” ou em cordões grossos.

No meu caso, que não tenho uma mesa de cozinha, se fizesse um banco ia ficar chutando ele pela casa, então a solução foi fazer um sistema de montar e desmontar baseado em uma tábua com ajuste de largura para ser presa em diferentes mesas. As fotos, creio, são auto explicativas.





A tábua possui 15 cm de largura por 2,5 cm de espessura, é de eucalipto, como todas as demais peças, e seu comprimento é 50 cm. Sobre ela há uma tábua mais fina para deixar tudo mais leve, onde foram feitos dois rasgos para que em cada um houvesse uma manopla com a finalidade de fixar a dimensão longitudinal. O Bigolaro passa pelo furo da tábua grossa e suas aletas são fixadas nela com dois parafusos e porcas borboleta, por fim, tanto na peça móvel de ajuste do comprimento, quanto na de fixação do Bigolaro, há calços com 1,5 cm de espessura que prendem o conjunto no tampo da mesa que pode ter a largura de 55 a 80 cm.


 

Mangiare


O Bigoli, por ser muito apreciado, acumulou receitas ao longo do tempo em diversos locais na região do Vêneto e hoje está muito além da tradicional "Bigoli in salsa” feita com anchovas e ou sardinhas e cebolas. Várias fontes foram consultadas para este post, e peço perdão por não ter conseguido organizá-las em hiperlinks, mas encorajo uma visita ao site da L’Associazione Italiana Food Blogger (AIFB)  e dali para onde ele o levar.

Il Bigoli.


A pasta base para o Bigoli era feita de farinha comum, sal e água que bastasse para ela ficar moldável.  Não encontrei as proporções descritas apropriadamente de uma fonte confiável, então selecionei a variante que mais gostei e experimentei algumas vezes. Creio que obtive um melhor resultado ao misturar, em volume, 2/3 de farinha comum com 1/3 de farinha de sêmola ou grão duro e para cada 200 gramas destas misturas adicionei uma gema e um ovo inteiro e uma pitada pequena de sal. Depois sove bem em uma superfície enfarinhada e vá incorporando água morna aos poucos (pouco mesmo, molhar as mãos algumas vezes basta) até a massa desgrudar dos dedos e ficar lisa (bumbum de bebê). Deixar descansar por 20 a 30 minutos. Quanta água? Só no olho mesmo, é impossível dizer, pois cada farinha hidrata de uma forma diferente, mas o importante é que seja SÓ O SUFICIENTE para obter uma massa rígida, caso contrário, quando for extrusada, embora vá passar com menos esforço pelos furos, os fios frágeis vão espichar, partir e grudarão uns nos outros.

Aprendi uma coisa importante sobre massas extrusadas nesta pandemia (este parágrafo é uma atualização feita em junho de 2020), a hidratação da massa para o Bigolaro deve girar entorno dos 30% (em peso: 7 farinha e 3 de água). Quem usar ovos deve prestar até, pois as receitas tradicionais indicam 1 ovo para 100 g de farinha, o que é muito para extrudar.

Um ovo grande pesa umas 50 a 55g, se usarmos todo ele, se deve considerar que 75% seja água, ou seja, 40 g aproximadamente. Assim a hidratação da farinha na proporção usual fica bem alta para o Bigolaro. Grosso modo, se separarmos as coisas, as claras possuem 90% de água e as gemas 50% e em peso 38 g e 17 g respectivamente.

É possível fazer a massa só com água, só com ovos, só com gemas, só com claras (tem quem use vinho...). Então faça as contas: se em cada ovo há 40g de água, para hidratar 400 g de farinha a 30% use três ovos grandes inteiros e talvez um pouquinho mais de água (uma colher de chá) se os ovos forem muito pequenos, outra opção seria adicionar uma gema. De qualquer forma, não existe nada muito fixo e tudo deve ser sempre corrigido pela experiência do cozinheiro.






Na medida em que a massa for saindo do Bigolaro é bom enfarinhar antes de cortá-la. Use uma bacia com farinha a 40 cm do Bigolaro para aparar os fios. A massa pode ir direto para o cozimento, mas é melhor se for deixada para secar um pouco nas varinhas - que podem ser colocadas no encosto de cadeiras - ou num barbante grosso.

Coloque sempre uma folha de papel alumínio ou papel manteiga embaixo dos fios de massa, assim se alguma partir não vai fora.

Bigoli in salsa


A receita tradicional do “Bigoli in salsa”, ou Bigoli no Molho, é simples, só cebolas finamente cortadas e anchovas (ou sardinhas) secas, que depois de dessalgadas são lentamente dissolvidas no azeite extra virgem. Há boa chance desta receita ser o resultado do encontro das culturas católica e judaica nos guetos de Veneza na observância dos períodos de jejum.

500 g de Bigoli.
200 g de cebola.
4 colheres grandes de azeite extra virgem.
200 g de anchovas secas ou em conserva (pode pôr um pouco mais para dar mais gosto).
Sal e pimenta a gosto.

Passe as anchovas em água corrente para remover o excesso de sal (pode dessalgar em vinho banco), se houver ossos retire-os e pique grosseiramente os filés. Corte as cebolas em fatias bem finas e deite-as no óleo quente até dourar, então cubra com água quente e deixe cozinhar por cerca de dez minutos. Quando a água tiver evaporado, adicione as anchovas picadas e deixe fritar tudo por alguns minutos esmagando o peixe até que se torne um molho. Desligue o fogo e adicione mais um pouco de azeite. Junte o Bigoli cozido ao molho e salteie no fogo, pode adicionar um pouco de água para dar mais gosto na massa e no fim prove e corrija o sal se for necessário, além de adicionar pimenta a gosto. Serve cinco pessoas.

Em algumas receitas se usa manteiga para fazer o molho e assim que a cebola secar um pouco, pode ser adicionado salsa e cebolinha, ou uma pitada de canela em pó (que também pode ser posta depois de pronto), ou de gengibre e gotas de limão, assim como alcaparras.

Bigoli Neri


Não testei ainda, mas achei bem interessante esta receita tradicional da região da Lagoa das Pérolas, próxima de Veneza, que no passado também era tradicionalmente servida nos dias de "jejum" como a Sexta-Feira Santa e a Quarta-Feira de Cinzas.

400 g. de Bigoli.
4 Lulas, duas com a tinta.
Azeite extra virgem.
3 dentes de alho.
1 copo, meio a meio, de vinho branco e água.
Extrato de tomate, sal e pimenta o quanto baste.

Prepare um refogado com o alho e assim que dourar junte as lulas (o corpo em tiras e os tentáculos em cubos), vinho com a água e adicione um pouco de extrato de tomate - vá provando até arredondar. Em seguida, adicione a tinta e cozinhe em fogo baixo por cerca de dez minutos, quando reduzir um pouco adicione o Bigoli cozido em água salgada até o ponto “al dente” e finalize o cozimento no molho. Serve quatro pessoas.

Bigoli com pato (Bigoli al Tocio)


Típico no outono e inverno italianos, este prato forte usa no molho os miúdos do pato, a pele e toda sua gordura, além de um pouco de bacon. Por ser extremamente gorduroso, há versões mais leves do prato que usam apenas os miúdos, um pouco de carne e muito pouco das gorduras, que são substituídas pelo azeite extra virgem.

400 g de Bigoli.
Miúdos de pato: fígado, coração, moela ( as tripas são opcionais de raíz...).
Alecrim, alho, tomilho, manjerona e sálvia em buquê garni, ou picadas finamente.
1 xícara de vinho branco seco.
Azeite extra virgem.
Sal e pimenta a gosto.
Caldo da carcaça do pato fervida com 1 cebola, 2 talos de aipo e salsa.
Queijo ralado.

Desossar o pato, tirar a pele e separar um pouco da carne para o molho, o restante das carnes servirá para outra ocasião. Corte a porção separada da carne e toda a pele em tiras e coloque o esqueleto e a moela em uma panela com água, a cebola, o aipo e sal para fazer o caldo no qual irá cozinhar o Bigoli depois. Faça um refogado usando a gordura do pato, a carne e a pele, além da moela e dos outros miúdos, tempere com sal e pimenta a gosto e deixe fritar até adquirir um tom marrom escuro, quando deve ser adicionado o vinho. Deixe reduzir um pouco e junte o Bigoli com um pouco do caldo do cozimento e polvilhe com bastante queijo parmesão ralado.

Não tem pato, cace com Galinha da Angola.


Por fim, uma dica importante. No Brasil, sei lá por qual motivo, a gente costuma escorrer a massa e colocar o molho por cima, mas quem é observador notou  nas receitas que se faz o encontro da massa com o molho! Quando a massa está "al dente" se leva ela para a panela do molho para terminar seu cozimento dentro do molho. O motivo é óbvio, mas o óbvio é sempre o mais difícil...  



Saboreie-se!

 

4 comentários:

  1. Roberto,
    Adorei, bem instrutivo! Parabenizo-te pelo amor ao fabrico artesanal do alimento e sua história. Bom apetite, com vinho, claro!

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  2. Existe uma fábrica no RS q faz Bigolaro chamasse Munaretto.

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  3. Boa tarde. Como foi pedido no blog, segue e endereço de uma empresa que produz um bigolaro (um pouco adaptado mas que faz o mesmo efeito).

    www.munaretto.com.br

    Telefone
    (54) 3211.6154


    Endereço
    Rua General Jacinto Maria de Godoy,
    nº 1399 • Bairro Colina Sorriso
    Caxias do Sul/RS

    E-mail
    vendas@munaretto.com.br


    Whatsapp
    (54) 99265.6810

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