segunda-feira, 27 de abril de 2020

Um pão nosso a cada dia




Um pão que chia 





Faço pães a alguns anos, nada sistemático, acho que até meio caótico. Agora, é um bom desafio, porque excetuando aqueles que pegaram fogo, uma minoria absoluta e em boa parte por culpa dos vinhos, todos os demais foram consumidos: sucessos em poucos minutos, fracassos em dois ou três dias.

Nestes tempos de isolamento o número de padeirxs caseirxs anda rivalizando com a produção pornográfica deste segmento doméstico, em que pese ainda não ter visto nada que juntasse isso aí no tocante, talkey. Espero não estar dando ideias, menos ainda inspiração, afinal, já tem abusados fazendo bread lives...

Bom, voltando ao tema, do Pão (!). Minha intensão não é discutir o infinito de possibilidades padeirísticas, há muitos livros e vídeos para isso, alguns amigos também compartilham ótimas receitas por aí e basta querer encontrar.

Interessa, espero, mostrar uma forma antiga e especial de fazer pão, que possui um sabor inigualável aliada a algo realmente útil: como fazer UM PÃO NOSSO!

Isso mesmo, porque há pouquíssimas receitas para se fazer um pão apenas, um único e certeiro pão! Pense bem se dez em nove receitas não ensinam a fazer massa para dois, três ou mais pães, e tu já caiu varias vezes na quela de ajustar a receita e acabar fazendo um pão tão grande que fica velho antes do fim, não assa direito, a farinha acaba com a massa mole, etc.

E mais! Fazer UM PÃO que caiba em um forninho minúsculo, destes elétricos de 100 reais (o meu custou isso ano passado). Falo isso porque já assei pães em tudo que foi forno e de muitas maneiras, mas o único desafio real que encontrei (além de achar a temperatura correta do forno de barro) é dominar estes fornos elétricos baratos, nos quais além de não caber quase nada, ainda não esquentam bem nem na quantidade de calor por falta de isolamento, nem na homogeneidade pelas duas ou três resistências.

A mãe azeda


Pão de Sourdough e manteiga artesanal.
Então vamos lá! Primeiro o Sourdough!

Calma, não é pão disso não, Sourdough é o que se conhece por aqui como massa mãe, mas infelizmente é muito raro ser usada, talvez porque vicie que nem crack.

Se fores místico, holístico, ocultista, alquimista, esquisito, etc., comece ela com um figo orgânico, posto para secar na sua cozinha (época do ano, palavras mágicas, luz da lua ficam a teu critério...) e use seu mofo como fermento. 

No presente caso ai do lado, fui mais objetivo, usei um pacote de fermento comercial (creia, tanto faz se é vivo ou em pó) dissolvido em um copo de água posto dentro de um vidro grande (usei um de chucrute) no qual se adiciona outro copo de farinha e se completa com água quase até a borda. Misture tudo e deixe uma noite (pode falar umas palavras mágicas, benzer, por no orvalho, no luar...).

No outro dia é só colocar no refrigerador (se colocar no freezer, jogue fora depois) com tampa, sem apertar muito e esquecer por uma semana no mínimo. Quando lembrar, coloque um pouco mais de farinha e misture novamente. É importante trazer o que está no fundo para cima e daí para a frente, mais um dia e já pode ir usando. Essa massa vai viver  para sempre na tua geladeira (sou antigo), na verdade poderá viver mais que tu, então pense em colocar ela no testamento.

Mas para que serve?


Antigamente, quando a vida era mais séria, não tinha fermento para vender. Padarias e famílias guardavam o seu fermento por gerações e ainda há umas poucas que fazem isso - faz um tempo li um artigo sobre uma padaria de São paulo que perpetuara um fermento vindo da Europa na imigração.

A massa mãe, ou azeda, é isso e conta a lenda que "pilgrins" americanos trouxeram seus fermentos da Europa em sacos guardados dentro da roupa, onde cuspiam para manter a umidade ... Bom, quem disse que eram só as salsichas e as leis que não se devia saber como eram feitas, não sabia fazer pão de massa azeda...

Talvez estejas tentado, mas realmente não precisa cuspir dentro do pote, ok! Apenas guarde na geladeira e na medida do uso, vá repondo a farinha, Se não usar por muito tempo, renove, pondo fora um terço e adicionando farinha nova e mais água. Sim, ia esquecendo! É que eu moro na Borrússia e não uso água clorada, mas é importante fazer o Sourdough com água mineral! Os fungos, por razões óbvias não gostam de cloro.

Um Pão Por Vez


Dissolver o Sourdough e a metade da farinha
Então vamos ao processo. Note que a farinha nacional aceita no máximo 60% de hidratação, ou seja, para cada 100 g de farinha não adicione muito mais que 60 ml de água (1 ml = 1g, 1 l = 1 kg).

Como não quero amassar com as mãos para deixar tudo mais tranquilo, até porque aquele negócio de 15 minutos é uma baita mentira, só usarei a batedeira simples que tenho, de liquidação mesmo, mas atente para os misturadores, se a tua não tiver ganchos, só aqueles batedores de bolo, esquece, não é para pão e vai ter que ser na mão mesmo.

Então a primeira coisa é dissolver o Sourdough na água (de novo, use mineral). A meta é um pão de 400 gramas, então coloque 200 ml de água e uma colher de sopa de Sourdough, não muito cheia, como na foto do lado, se usar muito vai ter um pão tipo IPA, com IBU acima de 30...

Mexa até dissolver grosseiramente, adicione duas colheres de sopa de açúcar (se usar mascavo o pão vai parecer integral) e outra, mas bem rasa, de fermento seco, isso vai adiantar o processo e conseguirás terminar em um dia. Depois de tudo dissolvido, misture 200 g de farinha - eu uso um copo de medida, mas quem tiver TOC, fique a vontade para usar balança - e ligue a batedeira por uns minutos até ficar tudo mais ou menos homogêneo. Da qui para a frente é com os bichinhos, deixe eles trabalhando umas horas.

Quantas? Normalmente eu esqueço e depois lembro no meio do filme. Quanto mais tempo, mais forte fica o gosto dos flavinóides no pão, só a sua experiência vai poder ajustar ao seu gosto. Importante deixar coberto e num local, se não quente, pelo menos não gelado.

Flávi o que?


Olha, se tu é terraplanista, esquece, mas se acreditas que algumas coisas podem ser explicadas cientificamente, sugiro ler o livro "Um Cientista na Cozinha" do Hervé This.

Finaleira Final


Bom, os ansiosos deixaram fermentar umas quatro horas, quem seguiu minha técnica amnésica deixou quase o dobro disso. Deve estar como na foto acima: uma massa levemente amarelada e fofa, cheia de bolinhas e com um cheiro leve de cerveja. É que o fermento dela é bem parecido, na verdade são parentes mesmo.

Ligue a batedeira e após bater um pouco, adicione uma colher de sopa rasa de sal (mínimo), sete ou oito de óleo (de milho é mais neutro, oliva da outro sabor) e aos poucos, mais 200 g de farinha. Bata mais uns cinco minutos e ainda se estiver grudando muito no fundo e nas paredes, adicione mais um pouco de farinha até ficar soltando um pouco mais fácil, Durante o bater eu ajudo com uma espátula de madeira e assim sei melhor se está soltando do fundo ou não para ajustar a farinha extra. Mais dez ou quinze minutos e estará pronto. Vai forçar a batedeira mesmo, ela tem que ser um pouquinho guerreira.

Massa sovada em ponto de bum-bum de nenê
Alguém astuto viu que a hidratação ficou perto de 50%, é por causa da batedeira, na mão teria que pôr menos água ou mais farinha, enquanto fosse sovando até dar o ponto de bum-bum de nenê que se vê na foto do lado. Sem conotações criminosas, por favor, é que fica parecido mesmo, na textura e na superfície com leve "celulite". A sova pronta está registrada na foto.

Segunda Fermentação


Agora é esperar dobrar de tamanho e para facilitar eu já deixo na forma mesmo. Tem que ainda reamasse e deixe crescer novamente, isso espalha melhor o fermento e deixa as cadeias de glúten mais estruturadas, resultando (as vezes) naqueles pães de foto, bem fermentados, mas isso só vale a pena se a farinha for importada.

Como a ideia é um pão o mais simples possível, sugiro untar uma forma de pão, enfarinhar (pode ser com farinha fina de milho) e deixar a massa crescer dentro dela mesmo. Inclusive eu faço isso dentro do forno, ligado quase no mínimo da força e pelo máximo que o timer permita. Assim se adianta um pouco as coisas e protege o pão dos eventos fortuitos. Não é raro, quando faço de tarde, esqueço e acaba ficando a noite toda, de manhã é assar e comer.
Uma dica importante! Nestes forninhos a assadeira fica muito próxima das resistências, então deixe o mais longe o possível das superiores e para não queimar nas de baixo, use uma pedra de pizza (a minha veio junto com o forno) ou uma tampa de panela de ferro, ou algo refratário embaixo da forma.

Facilita assar se forem feitos uns cortes na parte de cima, assim ele além de crescer um pouco mais, aumenta a superfície que recebe o calor.

Para assar eu ligo por 35 minutos no máximo e o resultado é o da foto lá de cima, com a manteiga que encomendo da Rede de Orgânicos de Osório.

Ai que nojo, manteiga sem fiscalização..


Olha, se tem algo que me apavora é a intromissão do estado na vida das pessoas, e principalmente dos agricultores familiares. É um absurdo ser proibida a comercialização de produtos animais diretamente nas propriedades. Não estou defendendo vender em feiras e no comércio esses produtos sem fiscalização, estou defendendo APENAS!!! o direito de uma família agricultora vender na porteira do seu sitio ou para seus vizinhos (o meu caso) os produtos que também consome na sua mesa.

É incrível, mas pela legislação eu não posso vender nem mel na frente da minha casa, o tratamento é de traficante! Por isso está mais fácil comprar drogas que um queijo colonial neste País. Parabéns aos envolvidos, se algum deputado com dois neurônios ler isso, talvez se desafie a propor uma leizinha só que seja para não atrapalhar que está quieto. Agora, a chance disso é pequena, afinal, nem esses quadriciclos eles conseguem permitir que se use trabalhar.

Mas e o pão que chia lá da foto?


Tudo igual, só adicionei na segunda fermentação, além das 200 g de farinha, mais um ovo e 150 g de farinha semi-integral com Chia (já vem pronta, mas use a que quiser). Este pão eu esqueci e teve que ficar a noite toda fermentando na forma dentro do forninho, mas de manhã foi lembrar e assar por uns minutos mais (40 eu acho).

Antes do fim!


Este post é para a Neide e o Lucatti, que estão lutando contra está doença vil lá no Norte e sei que vão vencer! É pelo que rezo.

Fermente-se!